quinta-feira, 9 de fevereiro de 2023

tenho voz para
canções antigas
escrevo poemas
gosto de conversas 
longas
de silêncios 
largos
possuo total
afinidade com
o analógico

habito o exato
momento do fracasso

segunda-feira, 21 de fevereiro de 2022

dignidade 
é a primeira 
e a última palavra
é a fronteira do humano 

segunda-feira, 7 de dezembro de 2020

um tanto
mais irreal
a todo instante
não está 
minha infância 
apenas mais distante 
lugares e cheiros, 
sons, pessoas
e sentimentos
vão se adoçando
com o tempo
minha forma 
de amar e perdoar
clama por leveza:
jamais esquecer,
sempre transformar

domingo, 6 de dezembro de 2020

qual o tamanho 

da tira de couro 

arrancada de 

nossas costas 

será a medida

exata do "basta!"?

sexta-feira, 20 de novembro de 2020

 - Sua hipófise está exaurindo! 

- Hipófise?

- Sim! A glândula pituitária.

- Pituitária?

- Sim!  Ela se encontra na sela túrcica ou fossa hipofisária do osso esfenoide.

- Esfenoide?

- Sim! Fica abaixo do hipotálamo e posterior ao quiasma óptico, sendo ligada ao hipotálamo pela haste pedúnculo hipofisário ou infundíbulo. Consegue ver?

- Infundíbulo?

- Sim! A hipófise é responsável pela produção da somatotrofina... o hormônio do crescimento...

- Sei. Eu acho que já estou bem crescidinho.

- Mas você terá que fazer reposição hormonal. Sem ele suas células não sobrevivem muito tempo... essa é a raiz de suas dores.

- E o que elas têm a dizer sobre isso?

- Quem?

- As dores

- As dores?

- Sim! "Dai a palavra à dor..."

- Palavra à dor?

- Sim! O diálogo entre Malcolm e Macduff...

- Não entendo...

- Macbeth!

- Macbeth?

- Shakespeare!

- O que é que tem ele?

quarta-feira, 14 de outubro de 2020

Hoje fui visitar um casal de amigos - em um sonho, obviamente. Como não conheço ainda pessoalmente a casa nova e como o sonho foi parar, pelo que parece, por acaso na porta da casa deles, meu cérebro teve que rapidamente inventar. Como faz muito tempo que só os vejo nas redes sociais, ele teve que se virar com as informações mais importantes que possui: dois filhos, um menino e uma menina. Quem me atende é a filha, ainda bebê. Brinco com ela por algum tempo, chegam todos, conversamos sobre algo que não me recordo e sinto a estranha necessidade de lavar os cabelos na pia do banheiro. No sonho tenho cabelos compridos - talvez um subterfúgio, não menos irreal, para o cenário inventado. E como ele me colocou em uma situação extremamente desconfortável, ainda mais quando percebo que molhei todo o chão do pequeno banheiro e, como deve haver um limite para a autoenganação, meus amigos me convidam para sair. Já nos primeiro passos em direção à rua, porém, perco meus amigos de vista e outra história começa. Acordo e me recordo que há uma fotografia que mostra um pouco do interior da casa, mas, para utilizar essa informação, o cérebro deveria explorar lugares que, provavelmente, são inacessíveis em um sonho - que, talvez, não seja nada mais que uma sucessão de lampejos e fragmentos que precisam ser emendados. Mas acordei saudoso dos amigos e dos cabelos compridos da adolescência.

Diário da quarentena, dia 202.

terça-feira, 22 de setembro de 2020

João trabalhava paraTeresa 
que trabalhava para Raimundo 
que trabalhava para Maria 
que trabalhava para Joaquim 
que trabalhava para Lili 
que não trabalhava para ninguém. 
João e Teresa foram demitidos
e permanecem desempregados
um ano após a "reengenharia", 
Raimundo acumulou as funções
e recebeu 3% de aumento salarial, 
Maria não se deu bem com 
o antidepressivo e suicidou-se, 
Joaquim recebeu 100% do bônus 
e agora é "Chief Executive Officer",
e Lili, que hoje mora em Zurique, 
vendeu grande parte de suas ações 
para J. Pinto Fernandes
que é especulador financeiro
e que está menos ainda se lixando 
para a história toda.

quarta-feira, 9 de setembro de 2020

o inferno deve ser
o mais alto grau
da burocracia 

segunda-feira, 3 de agosto de 2020

apesar do pesar
do pesar a pesar

apesar de você
do pesar e você

caminho sem ruído 
todo o ruído caminho

sexta-feira, 31 de julho de 2020

deixo a casa
suas formigas
e aranhas
suas orquídeas 
a parreira
e o mamoeiro 
aos pés da janela

deixo a casa 
e suas várias 
tonalidades 
de lua
do frio que 
vasculhava
frestas 
e do calor que 
empenava portas

deixo a casa
e sua estatura
do teto aos
meus pesadelos
ao chão dos
meus devaneios

deixo a casa
como quem 
acabou de sair
de um ventre
e pariu

segunda-feira, 15 de junho de 2020

na criança do farol
na porta da prisão
na fila do emprego

em cada latifúndio
na falta de alegria
em todo desespero

no esgoto à céu aberto
na fila do hospital
na falta de dinheiro

na comida envenenada
no dente apodrecido
no menino carvoeiro

no corpo reprimido
na falta de sentido
no riso do banqueiro

no indígena queimado
nas farsas da polícia
nas chagas do povo negro

na falta de esperança
no amor entorpecido
no ódio derradeiro

a revolução espera

quinta-feira, 21 de maio de 2020

o difícil
caminhar
entre o meu querer
e o bem quer

segunda-feira, 20 de abril de 2020

esta não é apenas 
uma nota de repúdio
esta é "a" nota de repúdio

a nota mega blaster repudienta
a nota que fará todas as outras 
notas já emitidas obsoletas

esta é a nota definitiva
a nota que vale mais que 
todo um bloco de notas
a gota d'água das notas

depois dela
será necessário inventarmos
novas formas de resignação

terça-feira, 24 de março de 2020

no capitalismo
(substantivo
masculino)

a contradição
é mãe solteira
da verdade

sexta-feira, 14 de fevereiro de 2020

paixão
é concentrar-se
amor
é diluir-se

segunda-feira, 10 de fevereiro de 2020

na rua de casa
havia uma feira
todas as terças

na frente de casa
havia uma barraca
que vendia peixes

ao lado da barraca
havia um tambor
onde se descartavam
barrigadas, cabeças
e escamas

diante do tambor
havia sempre um homem
que devorava aquilo que era
sistematicamente descartado

por exigência dos vizinhos
o homem passou a esperar
até o final da feira
para comer os restos

na rua de casa
havia uma feira
na frente de casa
havia uma barraca
que vendia peixes
ao lado da barraca
havia uma tambor
que ficava exposto
ao sol e à chuva

no final de tarde
o odor insuportável
que emanava do tambor
cobria quarteirões

apenas nesse momento
era permitido ao homem
comer os restos

lembro-me daquele homem
não apenas quando sinto cheiro de peixe
ou quando vejo uma feira ou um tambor
mas todas as vezes que chove ou faz sol

segunda-feira, 3 de fevereiro de 2020

o amor
é um jardim
que se constrói
sobre escombros

é aquilo que germina
sobre as ruínas
de todas as ilusões

quinta-feira, 2 de janeiro de 2020

à frente
um sentido
o sorriso
de lado
atrás
o caminho
no caminho
os pedaços
e os pedaços
são meus
eu mesmo
retalho

sábado, 28 de dezembro de 2019

a fina poeira dançando com o vento,
um olhar perdido no horizonte,
duas mãos que sutilmente se encontram,
o soluço de quem resiste ao choro...
sempre me encanta as miudezas, 
as coisas sem aparente importância:
minha benção e maldição

sábado, 7 de dezembro de 2019

como posso alcançá-la
estrela pequenininha
se hoje receio o toque
de cada palavra minha?

teria sido o universo
de afetos que confronto
que nos pôs tão afastados
há milhões e milhões
de desencontros?